
Em meio à pandemia do novo coronavírus, Estados Unidos e China trocam alfinetadas e fazem comentários sobre teorias de uma suposta conspiração. Nas últimas semanas, várias autoridades chinesas apontaram que o coronavírus foi levado para a China pelos militares americanos. O porta-voz da chancelaria chinesa, Zhao Lijian, sugeriu no Twitter que o “paciente zero” da pandemia teria vindo os Estados Unidos, e não da cidade chinesa de Wuhan, onde surgiram os primeiros casos, no final de 2019.
“É possível que o Exército americano tenha trazido a epidemia para Wuhan. Os Estados Unidos devem ser transparentes! Devem publicar seus dados!” – tuitou Zhao, conhecido por suas declarações polêmicas nas redes sociais.
Já os Estados Unidos usam termos para descrevê-lo que estigmatizam a China, além é claro, de colocar uma questão sobre o vírus ter tido origem no laboratório em Wuhan, que estuda, entre outras coisas, coronavírus em morcegos. E estudos indicam que o vírus da Covid-19 veio de um morcego. A hipótese que Trump diz estar examinando é se alguém dentro do laboratório foi infectado por um animal e, sem querer, levou o vírus para fora.
O Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) tem certificação de segurança nível quatro, o mais alto em biopesquisa. Mas a imprensa americana afirma que, segundo fontes diplomáticas, funcionários da embaixada dos Estados Unidos na China visitaram o laboratório há cerca de dois anos e alertaram Washington sobre condições inadequadas de segurança.
Mas a China se defende. O principal pesquisador do WIV, Shi Zhengli, nega que a transmissão em humanos tenha se iniciado no instituto. E pesquisadores acreditam mesmo que o vírus entrou em contato com humanos em um mercado de carne de Wuhan que vende animais exóticos.
Uma pesquisa de um grupo internacional de cientistas, publicada na revista científica Nature, uma das mais respeitadas do mundo, concluiu que o novo coronavírus não foi desenvolvido em laboratório.
O doutor Robert Gary, microbiólogo da Universidade de Tulane em Nova Orleans participou da pesquisa e disse que definitivamente o novo coronavírus é um produto da natureza.
A França, onde vários dos cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan treinaram, divulgou um comunicado afirmando que não há nenhuma evidência que ligue o laboratório chinês com a origem da pandemia.
DEMAIS PAÍSES
Mas as acusações não são somente dos Estados Unidos. Explicações, dinheiro ou perdão total de dívida. É isto que alguns países já começaram a exigir à China à medida que a pandemia do novo coronavírus coloca cada um deles à prova e deixa as suas economias a caminhar em perigo.
O coro de críticas começa a subir em torno do regime de Xi Jinping, entre denúncias que apontam para os alegados encobrimentos de Pequim na fase inicial do surto do coronavírus, acusações de domínio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o levantamento de suspeitas de que o vírus pode ter sido criado num laboratório em Wuhan, do qual terá sido espalhado por descuido e falta de segurança.
EUA
O anuncio foi dado por Donald Trump: os EUA estão a investigar a China. A confirmação presidencial surgiu num dos briefings de Trump na Casa Branca, após lhe ter sido colocada uma questão sobre o vírus SARS-CoV-2 (que leva à doença Covid-19) poder ter tido origem num laboratório em Wuhan.
A maneira como Donald Trump respondeu reflete a encruzilhada em que se encontra: por um lado, não quer nem pode hostilizar por completo a única potência capaz de fazer sombra aos EUA, que é a China; pelo outro, não quer ficar atrás do coro de críticas em relação a Pequim, do qual se serve como arma política.
Além desta investigação, os EUA estão também a fazer outra em torno do alegado favorecimento da OMS. Porém, há quem vá mais longe e fale de forma mais incisiva em relação à China. Primeiro, há o Senado, de maioria republicana. Um conjunto de oito senadores republicanos dirigiu uma petição a Donald Trump para que fosse aberta uma “investigação internacional” em torno da China e do novo coronavírus. Os oito senadores propõe uma investigação centrada em dois aspetos: a origem do vírus, acenando à possibilidade (que até agora carece de provas) de o vírus ter tido sido gerado num laboratório; e o processo de decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) durante esta pandemia, em linha com as críticas de que aquela organização seria conivente com a China. Tanto uma como a outra já estão a decorrer, conforme foi anunciado por Donald Trump.
Depois, há os estados. Tudo começou com o Missouri, cujo procurador-geral, o republicano Eric Schmitt, decidiu fazer o que nenhum outro país fez até agora: processar a China. O governo chinês mentiu ao mundo sobre o perigo e a natureza contagiosa da Covid-19, silenciou denunciantes e pouco fez para impedir que a doença se espalhasse”, disse aquele jurista conservador. “Têm de ser responsabilizados pelas suas ações”, continuou Eric Schmitt.
À ação jurídica movida pelo Missouri, a China respondeu através do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Geng Shuang. “Este dito processo é muito absurdo e não tem qualquer base de sustentação factual ou legal”, disse.
Austrália
Atrás dos EUA, veio a Austrália. As hostilidades foram abertas pela ministra dos Negócios Estrangeiros, Marise Payne, que numa entrevista à televisão ABC TV admitiu: “A minha preocupação atingiu um ponto alto. Estou preocupada em termos de transparência e quero garantir que conseguimos interagir abertamente”.
E, insistindo sempre na palavra “transparência” ao longo da entrevista, deixou expressa a posição do governo australiano em torno da Covid-19, da sua origem na China e também da gestão da pandemia pela OMS: “As questões relativas ao coronavírus são passíveis de serem avaliadas de forma independente e penso que é importante que o façamos”. E deixou uma certeza: “A Austrália vai absolutamente insistir com isso”.
Também neste caso, a China respondeu negativamente. “A dita investigação independente proposta pela Austrália é, na verdade, uma manipulação da realidade política”, reagiu o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Geng Shuang. “Aconselhamos a Austrália a desistir dos seus preconceitos ideológicos.”
Alemanha
Da parte do Governo da Alemanha, a reserva em criticar a China neste momento mantém-se. O mesmo não se pode dizer, porém, do jornal com maior tiragem daquele país, o tablóide Bild, que apresentou nas suas páginas uma fatura endereçada à China no valor de 149 mil milhões de euros. Tudo isto sob o título: “É isto que a China já nos deve”.
A conta de dinheiro perdido na Alemanha por causa da pandemia, segundo o Bild, incluía 24 mil milhões pela perda de receita no turismo; 7,2 mil milhões pela indústria cinematográfica germânica; 1 milhão de euros por cada hora no caso da Lufthansa; 50 mil milhões para as pequenas e médias empresas. A lista continua, com exemplos que iam ainda à Volskwagen, aos clubes de futebol ou ao mercado livreiro, entre outros. No final, tudo somado, o Bild pediu à China que pagasse à Alemanha 149 mil milhões de euros, equivalente a uma quebra de 4,2% no PIB.
A proposta daquele jornal foi mal recebida pela embaixada da China em Berlim, que reagiu no próprio dia. “Qualquer pessoa que faça os mesmos cálculos do Bild só atiça o nacionalismo, o preconceito, a xenofobia e a hostilidade contra a China”, escreveu a porta-voz da embaixada, Tao Lili, numa carta aberta ao diretor do Bild.
Reino Unido
Boris Johnson ainda não teve nenhuma declaração crítica em relação à China. Mas o homem por ele escolhido para tomar as rédeas do Governo do Reino Unido durante a sua ausência sim (Boris Johnson, que foi internado a 6 de abril por Covid-19 e teve alta no dia 12 do mesmo, continua a recuperar).
A 16 de abril, quando lhe perguntaram como é que o Reino Unido pretende lidar com a China daqui em diante, Dominic Raab, que além de primeiro-ministro em funções é ministro dos Negócios Estrangeiros, respondeu: “Não há dúvida de que não podemos fazer negócios como antes [a expressão original foi “business as usual“] depois desta crise”.
“Vamos ter de colocar questões difíceis sobre como é que tudo surgiu e porque é que o vírus não foi travado mais cedo”, acrescentou.
África
Não é certo quanto dinheiro o conjunto dos países africanos devem à China. De acordo com os cálculos da China Africa Research Initiative, da Johns Hopkins University, são 152 mil milhões no período entre 2000 e 2018. E, segundo as contas do Banco Mundial, também feitas em 2018, 17% da dívida africana era chinesa.
Agora que a crise do novo coronavírus levou mais de 90 países a fazerem pedidos de financiamento urgente ao Fundo Monetário Internacional, já se ouvem várias vozes em diferentes países do continente a favor de um cancelamento da dívida à China na sequência da pandemia da Covid-19.